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Boavista - areas protegidas

A Rede de Áreas Protegidas da Boa Vista: Entre o Imperativo Biológico e a Pressão Antropogénica


A Ilha da Boa Vista não deve ser interpretada meramente como um destino de lazer balnear, mas sim como um laboratório biogeográfico de importância global. Situada na interface entre a Macaronésia e o Sahel, a ilha sustenta ecossistemas de fragilidade extrema, onde a aridez dita as regras da evolução. O estabelecimento de uma Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP), consolidada pelo Decreto-Lei n.º 3/2003, não foi um ato burocrático, mas um reconhecimento da responsabilidade ética do Estado cabo-verdiano perante um património natural insubstituível. Contudo, a eficácia desta rede enfrenta o desafio estrutural de coexistir com um modelo de desenvolvimento turístico agressivo e com pressões demográficas crescentes.


A Boa Vista possui 14 áreas protegidas, que abrangem ecossistemas terrestres e marinhos críticos. A análise destes espaços exige uma dissecção que vá além da paisagem e compreenda as dinâmicas de poder, conservação e uso do solo.

A arquitetura da conservação na Boa Vista divide-se em categorias que refletem diferentes níveis de intervenção humana permitida e objetivos de preservação:

  • Reservas Naturais Integrais (Santuários Intocáveis): Estes são os redutos da biodiversidade onde a presença humana deve ser residual ou nula. Destacam-se os ilhéus: Ilhéu de Baluarte, Ilhéu dos Pássaros e Ilhéu de Curral Velho. Estes espaços, isentos de infraestruturas, são vitais para a nidificação de aves marinhas como o Alcatraz (Sula leucogaster) e o Rabil (Fregata magnificens), espécies que enfrentam o risco de extinção local devido à perturbação humana histórica. A integridade destes ilhéus é um teste à capacidade do Estado de impor limites absolutos à exploração.

  • Reservas Naturais (A Dinâmica Costeira): A Reserva Natural da Tartaruga, no sudeste da ilha, é o epicentro global da conservação da tartaruga comum (Caretta caretta), albergando a terceira maior população nidificante do mundo. A sobrevivência desta espécie depende da inviolabilidade destas praias face à especulação imobiliária e à poluição luminosa. Paralelamente, as reservas de Boa Esperança e Morro de Areia protegem sistemas dunares móveis e zonas húmidas essenciais. A Reserva da Boa Esperança, por exemplo, engloba a Ribeira de Rabil e ecossistemas salinos fundamentais para aves migratórias (Sítio Ramsar), mas enfrenta a pressão direta do desenvolvimento urbano e turístico adjacente.

  • Parques Naturais (O Modelo de Coexistência): O Parque Natural do Norte é a área protegida mais extensa da ilha, abrangendo o quadrante nordeste e integrando uma importante área marinha. Esta categoria visa conciliar a conservação com as atividades socioeconómicas tradicionais das populações locais (Fundo das Figueiras, João Galego), promovendo um modelo de desenvolvimento que não aliene a comunidade do seu território, mas que exige uma fiscalização rigorosa para evitar a sobrepesca e a extração ilegal de inertes.

  • Monumentos Naturais e Paisagens Protegidas: Estruturas geológicas como o Monte Estância e a Rocha Estância são protegidas pela sua singularidade geomorfológica e pela presença de endemismos florísticos rupícolas.


VIDEO : Em Boa Vista, Cabo Verde, estamos na temporada de avistamento de baleias-de-bossa, com observações diárias de mães, crias e machos em comportamentos de acasalamento e saltos espetaculares. A ilha destaca-se pelas 14 áreas protegidas, incluindo reservas naturais como a Reserva de Tartarugas, parques e ilhéus integrais, abrigando rica biodiversidade: tartarugas marinhas em desova, colônias de aves, tubarões juvenis (seis espécies confirmadas) e raias. O projeto Biotur integra conservação e turismo sustentável, promovendo protocolos para minimizar impactos, como regras para embarcações, patrulhas contra caça ilegal e educação de turistas e operadores. Pesquisas científicas monitorizam espécies, enfatizando a compatibilização entre experiências turísticas e preservação ambiental.

2. O Conflito Estrutural: ZDTI vs. Áreas Protegidas


A análise crítica do ordenamento do território na Boa Vista revela uma tensão latente: a sobreposição e o conflito entre as Zonas de Desenvolvimento Turístico Integral (ZDTI) e as Áreas Protegidas.

O planeamento económico, muitas vezes centralizado e focado na maximização de receitas turísticas, desenhou ZDTIs (como as de Chaves, Morro de Areia e Santa Mónica) que colidem fisicamente ou funcionalmente com reservas naturais. A construção de grandes complexos hoteleiros na orla costeira fragmenta habitats críticos, interrompe a dinâmica sedimentar das dunas e introduz pressões (lixo, luz, ruído) incompatíveis com a conservação estrita.

A situação da Lagoa de Rabil é paradigmática deste conflito: embora seja uma zona húmida de importância internacional (Ramsar) e vital para a avifauna, a sua gestão é frequentemente comprometida pela proximidade de infraestruturas turísticas e pela falta de uma implementação efetiva dos planos de gestão ambiental, transformando-se por vezes em cenário de atividades recreativas desreguladas.

3. Ameaças Sistémicas e a Responsabilidade Coletiva


Para além do betão, a biodiversidade da Boa Vista enfrenta ameaças silenciosas que exigem uma intervenção sistémica:

  • A Invasão Biológica: A proliferação descontrolada da Prosopis juliflora (Acácia Americana) constitui um desastre ecológico, homogeneizando a paisagem e competindo com a flora nativa, como a Tamareira (Phoenix atlantica), alterando a estrutura dos solos e o regime hídrico.
  • O "Turismo de Aventura" Predatório: A circulação anárquica de moto-quatros e veículos 4x4 fora dos trilhos estabelecidos não é uma forma de "explorar" a ilha, mas sim um ato de vandalismo geológico que destrói ninhos de tartarugas e desestabiliza as dunas.
  • A Passividade na Governação: Embora existam quadros legais robustos (Decreto-Lei 3/2003), a eficácia da gestão é frequentemente minada pela falta de recursos humanos, fiscalização deficiente e uma centralização excessiva das decisões na cidade da Praia, longe da realidade insular.

Conclusão

Visitar ou investir na Boa Vista acarreta uma responsabilidade moral. As áreas protegidas não são meros cenários fotográficos; são sistemas de suporte de vida. O futuro da ilha depende da transição de um modelo de "exploração de recursos" para um modelo de "gestão de ecossistemas".

É necessario que a sociedade civil, os investidores e os visitantes exijam e pratiquem um respeito pelos limites ecológicos. Isto implica apoiar financeiramente a conservação (através de taxas ambientais transparentes), repudiar operadores turísticos que violam as normas ambientais e compreender que, numa ilha árida e frágil, a conservação da natureza não é um luxo, mas a única garantia de sobrevivência a longo prazo.