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 Boavista - Degradação Ecológica

Boa Vista: A Erosão de um Paraíso 


A Ilha da Boa Vista não é meramente um postal turístico; é um sistema biogeográfico de complexidade ímpar e fragilidade extrema. Situada na extensão do Sahel africano, esta ilha enfrenta uma crise existencial onde a pressão antropogénica colide violentamente com limites ecológicos intransponíveis. A narrativa de "desenvolvimento" que tem sido vendida mascara uma realidade de erosão sistémica — não apenas das suas dunas, mas da sua integridade biológica e coesão social.

Para o observador crítico e o viajante consciente, é imperativo desconstruir as camadas desta degradação. Não estamos perante acidentes naturais, mas sim consequências de escolhas políticas e económicas deliberadas.

1. A Ditadura do Betão e o Conflito Territorial


A principal ameaça à Boa Vista reside na sua própria estratégia de desenvolvimento: a monocultura do turismo de massa. Existe um conflito estrutural no ordenamento do território, onde as Zonas de Desenvolvimento Turístico Integral (ZDTIs) — áreas destinadas a grandes resorts — se sobrepõem e asfixiam ecossistemas críticos.

  • O Cerco às Áreas Protegidas: A expansão imobiliária na orla costeira não respeita os limites ecológicos. As ZDTIs de Chaves, Morro de Areia e Santa Mónica colidem funcionalmente com reservas naturais vitais,. O caso da Lagoa de Rabil, um sítio Ramsar de importância internacional, é paradigmático: a pressão urbanística e turística transformou um santuário de aves migratórias numa zona de conflito de usos, comprometendo a sua função ecológica.
  • A "Barreira" Litoral: A construção desenfreada na linha da costa (o chamado Ribbon Development) cria barreiras físicas que interrompem a dinâmica sedimentar das dunas e bloqueiam o acesso visual e físico ao mar. Ao substituir habitats naturais por betão, comprometemos a resiliência da ilha face à subida do nível do mar e eventos climáticos extremos.

2. O Martírio da Biodiversidade: Lazer vs. Vida


A Boa Vista é um hotspot global de biodiversidade, albergando a terceira maior população mundial de nidificação da tartaruga Caretta caretta,,. Contudo, a sobrevivência desta espécie e de outras está sob ataque direto de atividades recreativas irresponsáveis.

  • A Praga dos Moto-Quatros: A circulação anárquica de veículos off-road (moto-quatros e 4x4) nas dunas e praias não é "aventura"; é vandalismo ambiental. Esta atividade compacta a areia, destrói ninhos de tartarugas e aves, e esmaga a vegetação dunar que impede a erosão,,,.
  • Poluição Luminosa e Desorientação: A iluminação artificial excessiva dos complexos turísticos e das vias de comunicação adjacentes às praias altera o comportamento de nidificação e desorienta as crias de tartaruga, conduzindo-as frequentemente à morte em vez de ao mar,,.
  • Invasoras Silenciosas: A introdução de espécies exóticas é uma bomba relógio ecológica. A proliferação da Acácia Americana (Prosopis juliflora) está a dizimar a flora nativa, competindo agressivamente por água com espécies endémicas como a Tamareira (Phoenix atlantica) e o Tarafe,. Simultaneamente, gatos e ratos introduzidos continuam a predar aves marinhas e répteis endémicos, ameaçando a extinção local de espécies como o Rabo-de-junco,,.

3. A Crise dos Recursos


A degradação ambiental na Boa Vista é indissociável da sua crise social. O modelo turístico atraiu mão-de-obra massiva de outras ilhas e da costa africana, sem que o Estado ou os investidores privados acautelassem infraestruturas básicas de habitação e saneamento.

  • O Bairro da Boa Esperança (A "Barraca"): Este assentamento informal, onde vive grande parte da força de trabalho da ilha, é o símbolo máximo da falência do planeamento. A falta de saneamento básico e o deficiente tratamento de resíduos sólidos criam riscos severos de saúde pública e contaminação dos solos e aquíferos,,,,.
  • Sede e Desperdício: Numa ilha árida que depende da dessalinização (um processo energívoro e dispendioso),, o consumo de água pelo turismo é desproporcional. A sobreexploração dos aquíferos costeiros já levou à intrusão salina, inutilizando solos agrícolas e agravando a desertificação,,.

Conclusão:

A Boa Vista está num ponto de inflexão. A continuidade do atual modelo de exploração conduzirá inevitavelmente à exaustão dos recursos que tornam a ilha atrativa.

Como visitantes e cidadãos globais, não podemos ser cúmplices passivos. É necessário contemplar medidas como:

  1. Tolerância Zero para a circulação de veículos fora dos trilhos demarcados e nas praias.
  2. Responsabilização dos Grandes Operadores pela pegada ecológica e social que geram, exigindo investimento real na conservação e na habitação digna para os trabalhadores locais.
  3. Harmonizar a Conservação com o setor imobiliário, respeitando integralmente os limites das Áreas Protegidas e corredores ecológicos.

O Caso da Lagoa de Rabil


A Lagoa de Rabil não é apenas um corpo de água salobra na foz de uma ribeira; é o epicentro de um conflito territorial e ético que define o modelo de desenvolvimento de Cabo Verde. Este ecossistema encapsula a tensão insolúvel entre os compromissos internacionais de conservação assumidos pelo Estado e a "realpolitik" da exploração turística intensiva. Analisar o "caso" da Lagoa de Rabil é realizar uma autópsia à forma como o ordenamento do território na Boa Vista tem sistematicamente privilegiado o betão em detrimento da integridade biológica.

1. O Estatuto

Do ponto de vista científico e diplomático, a importância da Lagoa de Rabil é inquestionável. Classificada como Sítio Ramsar em 2005, constitui uma Zona Húmida de Importância Internacional, funcionando como um checkpoint vital para aves migratórias no Atlântico Este e albergando espécies endémicas como o Pardal-de-terra (Passer iagoensis) e répteis exclusivos como a Chioninia spinalis e Hemidactylus boavistaensis.

Contudo, este estatuto internacional colide com uma realidade administrativa interna desconcertante: a Lagoa de Rabil não está formalmente integrada na Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP) de forma efetiva.

2. A Subordinação Legislativa: ZDTI vs. Conservação

O "caso" agrava-se quando analisamos a hierarquia do ordenamento do território. A Lagoa foi, na prática, engolida pela lógica da Zona de Desenvolvimento Turístico Integral (ZDTI) de Chaves.

Existe uma crítica severa, fundamentada em relatórios técnicos, de que a legislação nacional (especificamente o DL 44/2006) subordinou o planeamento das áreas protegidas aos interesses das ZDTIs. Em casos de sobreposição territorial, a prioridade foi dada ao investimento turístico imobiliário em detrimento da conservação. O resultado prático foi a transformação de um santuário de biodiversidade num ativo recreativo: a lagoa, que deveria ser um refúgio para a avifauna, foi convertida funcionalmente numa "piscina" para escolas de kitesurf e windsurf, atividades que perturbam a fauna e comprometem a função ecológica do sítio.

3. O Cerco Infraestrutural: Aeroporto e Urbanização

A integridade da Lagoa está sob cerco físico. O perímetro de concessão do Aeroporto Internacional Aristides Pereira sobrepõe-se à área identificada como crítica para a biodiversidade (KBA da Ribeira do Rabil). A expansão aeroportuária e a infraestruturação turística adjacente (hotéis RIU e acessos) criam um efeito de barreira, fragmentando o habitat e introduzindo poluição sonora e química que afeta diretamente as populações de aves e répteis.

Além disso, o ecossistema sofre com a invasão biológica da Acácia Americana (Prosopis juliflora), que altera a estrutura do solo e o regime hídrico, competindo com a vegetação nativa essencial para a estabilidade das margens, como a Tamareira (Phoenix atlantica).

4. Conclusão: A Urgência de uma Nova Ética Territorial

O caso da Lagoa de Rabil é o símbolo da falência de um modelo de "desenvolvimento sustentável" . As autoridades nacionais não implementam medidas de proteção eficazes porque a área foi tacitamente cedida à exploração turística e infraestrutural.