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Boavista - Fauna

A Fauna da Boa Vista: Resiliência Evolutiva e a Fragilidade de um Ecossistema Insular


A biodiversidade da Ilha da Boa Vista não deve ser encarada como mero ornamento paisagístico para consumo turístico, mas sim como um triunfo biológico da adaptação. Situada no limiar biogeográfico entre a Macaronésia e o Sahel africano, esta ilha árida sustenta um ecossistema de elevada especialização, onde a vida prospera em condições extremas de salinidade e escassez hídrica. A fauna local não é apenas um recurso; é um indicador da saúde ambiental do Atlântico e enfrenta pressões antropogénicas que exigem uma reflexão ética imediata e descomprometida.


A Hegemonia Marinha: Um Santuário Global sob Pressão

A relevância biológica da Boa Vista transcende as suas fronteiras terrestres, residindo fundamentalmente na sua interface com o oceano. A ilha não é apenas um local de passagem; é um nó crítico na rede de biodiversidade do Atlântico Norte.

1. O Imperativo da Caretta caretta (Tartaruga-comum) A Boa Vista acolhe a terceira maior população nidificante do mundo da tartaruga-comum (Caretta caretta), superada apenas por Omã e pelo sudeste dos EUA,,. Cerca de 85-90% da nidificação de todo o arquipélago ocorre nesta ilha, especificamente nas praias do leste e sudeste, como João Barrosa e Ervatão, integradas na Reserva Natural da Tartaruga,. Apesar deste estatuto, a espécie enfrenta ameaças sistémicas: a predação natural por caranguejos-fantasmas (Ocypode cursor),; a predação por espécies introduzidas (gatos e cães),; e a pressão humana direta. Embora a caça para consumo de carne e ovos persista como uma prática cultural enraizada, a perda de habitat devido à especulação imobiliária costeira e a perturbação por veículos motorizados (moto-quatros) nas dunas representam riscos estruturais severos,. Além disso, o aquecimento global ameaça "feminizar" as populações (o sexo é determinado pela temperatura da areia) e elevar o nível do mar, erodindo as praias de desova.


2. A Rota dos Cetáceos: O Berço da Megaptera novaeangliae A ilha é o único local conhecido de reprodução da baleia-de-bossa (Megaptera novaeangliae) no Atlântico Norte Oriental,. Durante a primavera, estas águas transformam-se num habitat crítico para o acasalamento e parição. A população é pequena e isolada, o que exige uma gestão rigorosa do tráfego marítimo e das atividades de observação turística, muitas vezes desreguladas, que podem perturbar estes processos vitais,.


3. O Berçário de Tubarões e a Riqueza Bentónica As baías pouco profundas da ilha, como a Baía das Gatas e Sal Rei, funcionam como "berçários" essenciais para diversas espécies de tubarões, incluindo o tubarão-lixa (Ginglymostoma cirratum), o tubarão-tigre (Galeocerdo cuvier) e o tubarão-de-pontas-negras (Carcharhinus limbatus),. No domínio dos invertebrados, a Boa Vista é um hotspot de endemismo para gastrópodes do género Conus. A ilha alberga cerca de 50% das espécies endémicas deste género em Cabo Verde (e.g., Conus boavistensis, Conus salreiensis), uma radiação evolutiva explosiva limitada a habitats específicos e altamente vulnerável à degradação costeira e à colheita indiscriminada,,.

A Avifauna: O Declínio Silencioso e a Extinção Local


A história da avifauna na Boa Vista é um testemunho da erosão da biodiversidade causada pela ação humana.

  • A Extinção da Fragata: A Fragata (Fregata magnificens), uma ave marinha majestosa que outrora nidificava nos ilhéus de Curral Velho e Baluarte, é hoje considerada extinta ou residual no arquipélago,. A perseguição humana direta e a perturbação dos ilhéus por pescadores e turistas ditaram o fim desta população reprodutora.
  • Os Últimos Refúgios: Espécies como o Alcatraz (Sula leucogaster) e o Rabo-de-junco (Phaethon aethereus) ainda resistem em números reduzidos nos ilhéus e falésias, mas sofrem com a predação por gatos e ratos introduzidos e a captura ilegal,,.
  • O Guincho (Pandion haliaetus): Esta rapina costeira mantém na Boa Vista uma população importante, nidificando em ilhéus e zonas rochosas, mas é sensível à perturbação humana e à degradação das zonas húmidas onde se alimenta,.

A Fauna Terrestre: Endemismo Reptiliano


Em terra, a aridez selecionou um grupo resiliente de répteis. A ilha possui endemismos notáveis, como a osga-de-muros-da-Boa-Vista (Tarentola boavistensis) e a Hemidactylus boavistensis, além do lagarto Chioninia spinalis,. Estas espécies, essenciais para o controlo de insetos, enfrentam a perda de habitat e a predação por espécies invasoras (gatos e ratos) que acompanham a expansão urbana e turística.


Conclusão: Uma Responsabilidade Ética

A fauna da Boa Vista não existe para servir de cenário a selfies ou para o consumo irrefletido. A presença de espécies invasoras, a circulação de moto-quatros em zonas protegidas, e a pressão imobiliária sobre a orla costeira não são "externalidades" do desenvolvimento; são escolhas políticas e económicas que comprometem o património natural.

A visita a este território exige uma consciência aguda: o ecossistema é frágil e a sobrevivência de espécies como a Caretta caretta ou a Fregata magnificens depende diretamente da contenção da pegada humana. A conservação não é opcional; é a única via para evitar que a Boa Vista se torne um deserto biológico.